sexta-feira, 30 de maio de 2008

O Troco

Comprar pão todas as manhãs era um fardo. Marta não tinha folga nem nos finais de semana, mas aceitava sua responsabilidade só para não ouvir as reclamações do marido.

Mas aquele domingo era diferente, e ela saiu da cama mais cedo. Escovou os dentes e vestiu-se em silêncio. Antes de encostar a porta do quarto, lançou um olhar penetrante sobre Carlos, que roncava esparramado no colchão.

Tomou a rua decidida e, com passadas firmes, chegou em menos de 15 minutos à padaria. Não a de sempre, mas uma concorrente, para não ser reconhecida. Pediu quatro pãezinhos, pegou um litro de leite e foi direto ao caixa. Enquanto o atendente registrava os valores, acrescentou um chocolate às compras.

– São quatro reais e quarenta centavos – informou o rapaz.

Marta não hesitou. Tinha planejado tudo durante semanas. Enfiou a mão no bolso direito e tirou uma moeda.

Tão logo sentiu o peso do pagamento, o atendente recolheu a mão esquerda para perto dos olhos. Mas que diacho é isso? – pensou. A dona-de-casa percebeu a expressão descrente do rapaz, mas disfarçou com um bocejo.

Ele então reexaminou a moeda e concluiu: aquilo só podia ser falso.

– Já sei – sorriu com ar de inteligente. – É pegadinha, não é? Pronto, já descobri, pode chamar o cinegrafista.

– Pegadinha de quê, garoto? – retrucou a mulher.

– Senhora... – prosseguiu o rapaz. – Não tenho vocação para palhaço. Por favor, são quatro reais e quarenta centavos.

– Sim, eu já ouvi – disse Marta. – Pegue logo esse dinheiro e me dê o troco. Vamos rápido. Meu marido vai surtar caso eu não traga logo o café da manhã.

O rapaz observou novamente o tal dinheiro – bem a contragosto. Ao perceber o crescimento da fila, ficou impaciente. Entregou a moeda à cliente e disse nervoso:

– Serei obrigado a chamar o seu Roberto, minha senhora.

Ela concordou:

– Ótimo. Não quero mais perder tempo com você.

Os fregueses já começavam a reclamar quando Roberto, dono do estabelecimento, chegou acompanhado do garoto. Ciente do impasse, foi direto ao assunto.

– Bom dia, senhora. Posso ver a moeda? – perguntou.

– Claro, aqui está. Espero que resolvamos isso rápido, meu marido aguarda por mim.

Roberto segurou o objeto e ficou impressionado. Maior que uma moeda comum e bem mais pesada, a peça trazia a figura de um índio observando a chegada da caravela. Terra e mar estavam representados por um adorno de penas e uma rosa dos ventos. Acima, havia a inscrição reveladora: “5 REAIS”. O dono nem precisou examinar o outro lado da peça.

– Jonas, aceite – ordenou.

– Mas, senhor, isso não é dinheiro – retrucou o atendente.

– Tanto faz. É de prata, veja. Deve valer até mais que cinco reais.

O rapaz concordou, enquanto via seu reflexo deprimido na moeda. Quis guardá-la na caixa registradora, mas o gerente preferiu levá-la consigo. Ainda irritado com a confusão, Jonas entregou sessenta centavos à dona-de-casa, desejando que ela nunca mais aparecesse por ali.

Marta recebeu o troco com um sorriso disfarçado. Seu olhar acentuava a satisfação que sentia. Já podia até imaginar o marido mastigando o pãozinho comprado com uma moeda rara de sua coleção. É capaz de ele engasgar, ironizou. Aquela maldita coleção de moedas. Bem-feito! Quem sabe agora esse infeliz me dá mais atenção.

Confira a foto da moeda no site do Banco Central do Brasil:
http://www.bcb.gov.br/htms/Mecir/mcomemor/MC500anos.asp?idpai=MOEDAREL

Conheça também o livro "Histórias que o Dinheiro Conta", de André Cintra e Renato Torelli:
http://www.lumuseditora.com.br/index.php?p=17

quinta-feira, 8 de maio de 2008

Alrelho e Cecília

O jovem Alrelho se apaixonou por uma mulher mais culta. Só que, ao se declarar, pôs tudo a perder.

Confiram a canção “Alrelho e Cecília”, de Luiz Eduardo e Renato Torelli, gravada em 2001 pela banda Reverso Invertido. Divirtam-se, emocionem-se com o fim de um grande amor e tomem cuidado para jamais cometerem os mesmos erros de nosso protagonista.

Escute aqui a canção Alrelho e Cecília:
http://www.lumuseditora.com.br/wp-content/uploads/outside/Alrelho_e_Cecilia.wma

Alrelho e Cecília
(Luiz Eduardo/Renato Torelli)

Fazem três anos,
Foi há muito tempo atrás,
E eu ainda não se esqueci.
Eu vi ela,
Em frente do jardim,
Fiquei fora de si.
Haviam sonhos na cabeça da
menina,
Meia tímida sorriu pra mim.
Subi pra cima os degrais correndo,
Tinha chego nela enfim.

Hei, peteca!
Espera aí pra mim lhe conhecer.
Tu é muito linda
A nível de beleza,
Tenho certeza que quero você . . .
E onde vai tão bela assim? Será o fim!
Se eu lhe perder e não poder lhe rever
Outra vez! 1 – 2 – 3


Fazem três anos,
Foi há muito tempo atrás,
Lhe amava tanto porém lhe perdi.
Nunca mais vi ela,
Não me quis por causa que
A minha fala era meia ruim.
Que por mim ser de menor, com inguinorância maior,
Não haviam chances de me dizer sim.
Não fica triste, Alrelho,
Um dia desses o futuro vai vim.


Hei, Cecília!
Passou três anos, não lhe esqueci.
Meu português está mais melhor que o vosso,
A grosso modo falo até latim.
E pra lhe provar que sei escrever
Vem vim ler
A carta que lhe redigi pra você:


São Paulo, 1 de dezembro de 2000.

Sessília,

A nível de amor, eu lhe amo mais que ontem e menas vezes que todos os amanhãs.
Eu sei que tu tá meia confusa, mas me use e abusa! Namore comigo! Seje pra sempre minha amada !!!
Esteje meio dia e meio em frente da padaria para conversar. Poderemos comprar umas duzentas gramas de mortandela para mim fazê um lanche pra você quando chegarmos em casa. Tomaremos um chopps . . . Estará proibido a entrada de outras pessoas que não seje nós dois. Deixaremos o resto pra depois que decidir nossos caminho.
Com carinho de quem lhe prefere mais do que tudo,

Alrelho

(antes fosse mudo)

domingo, 4 de maio de 2008

Pintando o mundo

A caixinha de lápis de cor foi o presente perfeito para o seu sexto aniversário. Era a ferramenta que Marquinhos precisava para recriar o mundo ao seu jeito.


No dia seguinte, deu início à grande obra, pintando o sol de azul real e o céu de verde. A partir daquele instante, o poente começaria bandeira e terminaria musgo.

Já as nuvens ficaram lilás. E o arco-íris ia do preto ao branco, com tonalidades de cinza pelo interior.

O mar se transformou em amarelo-ouro, com montanhas alaranjadas. A brisa soprava vermelho e as matas rosearam, com rosas e todas as demais flores em verde, para combinarem com o céu.

Ao final do dia, Marquinhos olhou o novo mundo satisfeito. O serviço estava completo e perfeito.

Seu sorriso aumentou ainda mais quando ouviu o bater da porta. Era seu pai, que acabava de chegar do trabalho. Antes que Arnaldo pudesse afrouxar a gravata, Marquinhos pulou em seus braços, ávido por mostrar a obra-prima. O pai perdeu a cor:

– Credo, filho, que horror. Você pintou tudo errado. Benhêêê, temos que levar o menino ao médico. Talvez ele seja daltônico.

Marquinhos murchou.

– Eu só queria fazer diferente, papai.

A decepção do filho sensibilizou Arnaldo. Não precisava ter sido tão duro, pensou. Então se ajoelhou na altura de Marquinhos, pôs as mãos em seus ombros e, com serenidade, explicou:

Não pode, filho. O mundo é do jeito que é. Não podemos mudá-lo. Entendeu?

Com a cabeça, Marquinhos concordou. Tinha apenas seis anos e já era adulto.