Não adiantava avisar:
– Cuidado, vó. Desse jeito, a senhora pode quebrar o pescoço.
Ela não ouvia. Separava as pílulas com o prazer de quem distribui dinheiro aos filhos. “Esta é para a memória, esta para a garganta, para o coração, o esôfago, fígado...”. Deixava-as todas enfileiradas, por ordem de localidade corpórea. Acreditava que, quanto mais próximo da boca estivesse o aparelho enfermo, mais rápido o medicamento fazia efeito.
Com tudo preparado, polegar e indicador pinçavam as bolinhas para deitá-las com requinte em língua esplêndida. Uma por vez. Só que o esmero terminava aí. De repente vinha um impulso desproporcional da cabeça, que ricocheteava para trás. O gole curto de água à temperatura ambiente lubrificava a garganta para a pílula seguinte.
– Vó, assim a senhora pode quebrar o pescoço. Não basta engolir?
Ela não escutava – e isso nada tinha a ver com o ouvido direito, quase surdo. “Assim desce mais fácil”, pensava com convicção. E dava um impulso atrás do outro transformando o cérebro num chocalho. Eu ficava de prontidão, sempre temendo pelo pior. Só não imaginava que o desfecho pudesse ser tão trágico.
Foi naquela tarde – para tristeza de filhos, netos e bisnetos – que o ritual das bolinhas se repetiu pela última vez. Após seguidos ricochetes, vovó chegava à pílula derradeira – a para unha encravada. Parece até que já esperava por algo, pois hesitou ao trazer o remédio à boca. Deve ter se lembrado de amores perdidos, de trabalhos não realizados, de viagens nunca feitas. A vida inteira que podia ter sido e que não foi.
A bolinha já estava sobre a língua úmida, quando veio o impulso fatídico. De olhos fechados, vovó jogou a cabeça para trás com tamanha força que ela se desprendeu do pescoço e alçou vôo. Deu três voltas no ar e caiu pesada, ouvido surdo para cima. Sons não importavam mais, e os olhos ainda gritaram por socorro quando viram o corpo sem cabeça pela primeira e última vez. O respiro final jamais oxigenaria o tronco. Tampouco a última pílula atingiria a extremidade do membro mais distante. A unha encravada de vovó estava condenada a doer pela eternidade.
(Frases ou idéias semelhantes a obras já publicadas não são meras coincidências. Este é um exercício de plágio criativo, desenvolvido no Curso para Formação de Escritores)
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3 comentários:
Eu sempre me perguntei por que o Axel Rose engolia o comprimido daquele jeito em "November Rain",coitado.
Além do texto todo, Renato, me diverti com a idéia da vó-fantasma "com a unha encravada doendo prá sempre" assombrando os netinhos...demais!
beijão
Você é muito bem-humorado! Bjs
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