quinta-feira, 6 de novembro de 2008

A Fuga



Não agüento mais, preciso sair daqui. Estou farto de obedecer às ordens do soberano e aos caprichos de sua esposa. Já não suporto nem a pequena Margarida. Chega de anões, bufões, servos, damas de companhia e bajuladores. Sem contar o cão pulguento, que jamais tomou banho. É como se minha vida estivesse estagnada há séculos. Cansei de ver e ser visto, tenho que fugir. A porta dos fundos é sempre vigiada, então sairei pela frente. O plano é roubar a alma de um admirador.

Hum... que tal esse homem negro? Boa aparência, barba feita, inteligente, chefe de família... ah, não, está metido com política. E o pior é que tem carisma. Já pensou se vira presidente? De jeito nenhum, sou um servo da arte, não quero essa vida. E nem sei falar inglês. Quer saber? É melhor procurar outro.

Opa, parece que esse aí gostou de mim. Boa aparência, cheiroso, barba aparada, inteligente, cabelos grisalhos, nem velho, nem moleque. Que interessante, ele vem de longe e fala português, igualzinho a meu avô. E ganha a vida escrevendo. Ótimo, preciso parar de respirar tanta tinta. Parece que ele vai montar um curso para jovens escritores. Caso eu não me adapte ao dia-a-dia do mestre, posso depois roubar a alma de um aluno. Será que algum deles saberá pintar?


Exercício proposto por Bruno Cobbi, intitulado Roubando Almas.
Inspirado na obra As Meninas, de Diego Velázquez (1599-1660)

Veja também: Sonhos, de Sady Folch, Andarilho Voador, de Bruno Cobbi, Abissais, de Olga Vallejo, Um cavaleiro garboso, de Terezinha Carvalho, Viajando desde Ivanikha, de Claudia Finamore e A psicóloga roubada, de Patricia Cytrynowicz -- textos em resposta ao mesmo exercício.
Confira ainda o mapa da aventura.

sexta-feira, 17 de outubro de 2008

O Fim de Fita-Verde


Fita-Verde partiu, sobre logo, ela a linda, tudo era uma vez. O pote continha um doce em calda, e o cesto estava vazio, que para buscar framboesas.


Podia ser qualquer dia, mas que nada. Não havia lenhadores, nem polícia civil ou militar. Todos em batalha, nos arredores do palácio, sob olhares esbugalhados de quem devia estar prefeito, mas sonhava com a faixa verde-amarela.

Foi aí que bandidos e lobos tiraram proveito. Antes mesmo de ver vovozinha, a sombra da menina sumiu no pó. Sua fita verde imaginada caiu, e não foi encontrada nunca mais. Igualzinho para sempre, só que tudo ao contrário. Melhor nem contar.

História triste, que cala quem escuta. Nada de que nem e eu então. Só soluço e lágrima.


Baseado em Fita Verde no Cabelo, de Guimarães Rosa
Confira também: Polícia Civil x Militar e quem devia estar prefeito, mas sonha com a faixa verde-amarela
E mais: Tosca Fita

sexta-feira, 10 de outubro de 2008

A Mensagem

Vamos, moribundo, não temos muito tempo. Levanta logo da cama. Tem lápis e papel no criado-mudo. Escreve exatamente o que eu disser. Isso, velho, segura firme. Vou ditar. Está pronto? Muito bem, anota aí.



... morrer! O que foi, velho imbecil? Parou de anotar por quê? Escreve logo, MORRER. Tem medo? Que diferença faz? Tá nas últimas mesmo... Já sei, preocupado com os netos, que nunca vão crescer. Que idiota, veja o lado positivo; pode reencontrá-los mais cedo do que imaginava. Aliás, sua mãe, aquela vagabunda, já tá te esperando... Velho improdutivo e acomodado, acha mesmo que sua vida valeu a pena? Vai, faz algo útil, escreve: MORRER.



... velho cretino! Apague essa droga... Vê agora se faz direito. Continue.



... uma...... o quê? Idiota, ainda não, acorda! Vamos, acorda! Droga, desencarnou. Vou precisar de outro imbecil. Ei, velho, tá indo pro lado errado. Volta aqui, cretino. Teu lugar agora é comigo.

quinta-feira, 10 de julho de 2008

O Peso da Vida

(exercício proposto por João Cunha, aluno do Curso de Formação para Escritores, baseado no filme 21 Gramas. Tema: o peso da vida. Tamanho: 10 linhas)

– O tiroteio nos atingiu, estamos perdendo combustível – informou o piloto. – A alternativa é jogar fora tudo que for excesso.

O casal não perdeu tempo e atirou malas e equipamentos ao mar.

– Sinto muito, mas ainda não dá. Talvez com 50 kg a menos...

Inconformado, o marido confirmou nos marcadores do helicóptero o diagnóstico do piloto. Então desanimou, tomado por uma culpa de 140 kg. Minha gordura matará todos nós, pensou. Cogitou pular, mas faltava coragem. Se ao menos nadasse como a esposa...

Foi quando ela passou o bebê para seu colo, beijando os dois com serenidade:

– Amo vocês – e jogou-se ao mar.

sexta-feira, 27 de junho de 2008

A Última Pílula

Não adiantava avisar:

– Cuidado, vó. Desse jeito, a senhora pode quebrar o pescoço.

Ela não ouvia. Separava as pílulas com o prazer de quem distribui dinheiro aos filhos. “Esta é para a memória, esta para a garganta, para o coração, o esôfago, fígado...”. Deixava-as todas enfileiradas, por ordem de localidade corpórea. Acreditava que, quanto mais próximo da boca estivesse o aparelho enfermo, mais rápido o medicamento fazia efeito.

Com tudo preparado, polegar e indicador pinçavam as bolinhas para deitá-las com requinte em língua esplêndida. Uma por vez. Só que o esmero terminava aí. De repente vinha um impulso desproporcional da cabeça, que ricocheteava para trás. O gole curto de água à temperatura ambiente lubrificava a garganta para a pílula seguinte.

– Vó, assim a senhora pode quebrar o pescoço. Não basta engolir?

Ela não escutava – e isso nada tinha a ver com o ouvido direito, quase surdo. “Assim desce mais fácil”, pensava com convicção. E dava um impulso atrás do outro transformando o cérebro num chocalho. Eu ficava de prontidão, sempre temendo pelo pior. Só não imaginava que o desfecho pudesse ser tão trágico.

Foi naquela tarde – para tristeza de filhos, netos e bisnetos – que o ritual das bolinhas se repetiu pela última vez. Após seguidos ricochetes, vovó chegava à pílula derradeira – a para unha encravada. Parece até que já esperava por algo, pois hesitou ao trazer o remédio à boca. Deve ter se lembrado de amores perdidos, de trabalhos não realizados, de viagens nunca feitas. A vida inteira que podia ter sido e que não foi.

A bolinha já estava sobre a língua úmida, quando veio o impulso fatídico. De olhos fechados, vovó jogou a cabeça para trás com tamanha força que ela se desprendeu do pescoço e alçou vôo. Deu três voltas no ar e caiu pesada, ouvido surdo para cima. Sons não importavam mais, e os olhos ainda gritaram por socorro quando viram o corpo sem cabeça pela primeira e última vez. O respiro final jamais oxigenaria o tronco. Tampouco a última pílula atingiria a extremidade do membro mais distante. A unha encravada de vovó estava condenada a doer pela eternidade.

(Frases ou idéias semelhantes a obras já publicadas não são meras coincidências. Este é um exercício de plágio criativo, desenvolvido no Curso para Formação de Escritores)

quarta-feira, 25 de junho de 2008

Sarau Cultural

É sábado, pessoal! Até lá!!!

segunda-feira, 16 de junho de 2008

Impressão

A conversa se deu hoje, na hora do almoço. Meu irmão chato foi testemunha e me contou. Julguei merecedora de um destaque.

...

Com o cigarro à mão, a morena desabafava com a colega. “É muita pressão na minha vida. Pressão no trabalho, pressão no casamento, pressão na faculdade...”

É verdade, a moça tem razão, e presto minha solidariedade a ela. É muita pressão. Pressão atmosférica, arterial, venosa, osmótica, estática, hidrostática, dinâmica, capilar, de vapor, de degenerescência...

Vivemos marcados sob pressão. Sofremos depressão, opressão, repressão, supressão, compressão, descompressão, contrapressão... O coração petrifica, perdemos a liberdade e a expressão da face.

A desopressão só vem com a morte.

Por isso, moça preciosa e pressionada, não desanime. A vida é mesmo uma panela de pressão.

(texto inexpressivo, disponível para pré-impressão, impressão ou reimpressão, por impressora plana, rotativa, digital ou mesmo comum, daquelas que temos em casa com cartucho recarregável)


quarta-feira, 4 de junho de 2008

Arraiá da Nossa Casa

Galera, a festa junina da ABCD Nossa Casa é no sábado, 7 de junho.
Abraço a todos e até lá!

O quê: Arraiá da Nossa Casa
Quando: 07/06/2008 (sábado)
Horário: das 15h às 21h
Onde: Rua Dr. Paulo Vieira, 246 - Perdizes (perto da estação Vila Madalena)
Para quê: Para se divertir e ajudar as crianças da ABCD Nossa Casa
Entrada: Franca

Para quem quiser conhecer mais sobre a associação e seus projetos educacionais, acesse www.abcdnossacasa.org.br.

sexta-feira, 30 de maio de 2008

O Troco

Comprar pão todas as manhãs era um fardo. Marta não tinha folga nem nos finais de semana, mas aceitava sua responsabilidade só para não ouvir as reclamações do marido.

Mas aquele domingo era diferente, e ela saiu da cama mais cedo. Escovou os dentes e vestiu-se em silêncio. Antes de encostar a porta do quarto, lançou um olhar penetrante sobre Carlos, que roncava esparramado no colchão.

Tomou a rua decidida e, com passadas firmes, chegou em menos de 15 minutos à padaria. Não a de sempre, mas uma concorrente, para não ser reconhecida. Pediu quatro pãezinhos, pegou um litro de leite e foi direto ao caixa. Enquanto o atendente registrava os valores, acrescentou um chocolate às compras.

– São quatro reais e quarenta centavos – informou o rapaz.

Marta não hesitou. Tinha planejado tudo durante semanas. Enfiou a mão no bolso direito e tirou uma moeda.

Tão logo sentiu o peso do pagamento, o atendente recolheu a mão esquerda para perto dos olhos. Mas que diacho é isso? – pensou. A dona-de-casa percebeu a expressão descrente do rapaz, mas disfarçou com um bocejo.

Ele então reexaminou a moeda e concluiu: aquilo só podia ser falso.

– Já sei – sorriu com ar de inteligente. – É pegadinha, não é? Pronto, já descobri, pode chamar o cinegrafista.

– Pegadinha de quê, garoto? – retrucou a mulher.

– Senhora... – prosseguiu o rapaz. – Não tenho vocação para palhaço. Por favor, são quatro reais e quarenta centavos.

– Sim, eu já ouvi – disse Marta. – Pegue logo esse dinheiro e me dê o troco. Vamos rápido. Meu marido vai surtar caso eu não traga logo o café da manhã.

O rapaz observou novamente o tal dinheiro – bem a contragosto. Ao perceber o crescimento da fila, ficou impaciente. Entregou a moeda à cliente e disse nervoso:

– Serei obrigado a chamar o seu Roberto, minha senhora.

Ela concordou:

– Ótimo. Não quero mais perder tempo com você.

Os fregueses já começavam a reclamar quando Roberto, dono do estabelecimento, chegou acompanhado do garoto. Ciente do impasse, foi direto ao assunto.

– Bom dia, senhora. Posso ver a moeda? – perguntou.

– Claro, aqui está. Espero que resolvamos isso rápido, meu marido aguarda por mim.

Roberto segurou o objeto e ficou impressionado. Maior que uma moeda comum e bem mais pesada, a peça trazia a figura de um índio observando a chegada da caravela. Terra e mar estavam representados por um adorno de penas e uma rosa dos ventos. Acima, havia a inscrição reveladora: “5 REAIS”. O dono nem precisou examinar o outro lado da peça.

– Jonas, aceite – ordenou.

– Mas, senhor, isso não é dinheiro – retrucou o atendente.

– Tanto faz. É de prata, veja. Deve valer até mais que cinco reais.

O rapaz concordou, enquanto via seu reflexo deprimido na moeda. Quis guardá-la na caixa registradora, mas o gerente preferiu levá-la consigo. Ainda irritado com a confusão, Jonas entregou sessenta centavos à dona-de-casa, desejando que ela nunca mais aparecesse por ali.

Marta recebeu o troco com um sorriso disfarçado. Seu olhar acentuava a satisfação que sentia. Já podia até imaginar o marido mastigando o pãozinho comprado com uma moeda rara de sua coleção. É capaz de ele engasgar, ironizou. Aquela maldita coleção de moedas. Bem-feito! Quem sabe agora esse infeliz me dá mais atenção.

Confira a foto da moeda no site do Banco Central do Brasil:
http://www.bcb.gov.br/htms/Mecir/mcomemor/MC500anos.asp?idpai=MOEDAREL

Conheça também o livro "Histórias que o Dinheiro Conta", de André Cintra e Renato Torelli:
http://www.lumuseditora.com.br/index.php?p=17

quinta-feira, 8 de maio de 2008

Alrelho e Cecília

O jovem Alrelho se apaixonou por uma mulher mais culta. Só que, ao se declarar, pôs tudo a perder.

Confiram a canção “Alrelho e Cecília”, de Luiz Eduardo e Renato Torelli, gravada em 2001 pela banda Reverso Invertido. Divirtam-se, emocionem-se com o fim de um grande amor e tomem cuidado para jamais cometerem os mesmos erros de nosso protagonista.

Escute aqui a canção Alrelho e Cecília:
http://www.lumuseditora.com.br/wp-content/uploads/outside/Alrelho_e_Cecilia.wma

Alrelho e Cecília
(Luiz Eduardo/Renato Torelli)

Fazem três anos,
Foi há muito tempo atrás,
E eu ainda não se esqueci.
Eu vi ela,
Em frente do jardim,
Fiquei fora de si.
Haviam sonhos na cabeça da
menina,
Meia tímida sorriu pra mim.
Subi pra cima os degrais correndo,
Tinha chego nela enfim.

Hei, peteca!
Espera aí pra mim lhe conhecer.
Tu é muito linda
A nível de beleza,
Tenho certeza que quero você . . .
E onde vai tão bela assim? Será o fim!
Se eu lhe perder e não poder lhe rever
Outra vez! 1 – 2 – 3


Fazem três anos,
Foi há muito tempo atrás,
Lhe amava tanto porém lhe perdi.
Nunca mais vi ela,
Não me quis por causa que
A minha fala era meia ruim.
Que por mim ser de menor, com inguinorância maior,
Não haviam chances de me dizer sim.
Não fica triste, Alrelho,
Um dia desses o futuro vai vim.


Hei, Cecília!
Passou três anos, não lhe esqueci.
Meu português está mais melhor que o vosso,
A grosso modo falo até latim.
E pra lhe provar que sei escrever
Vem vim ler
A carta que lhe redigi pra você:


São Paulo, 1 de dezembro de 2000.

Sessília,

A nível de amor, eu lhe amo mais que ontem e menas vezes que todos os amanhãs.
Eu sei que tu tá meia confusa, mas me use e abusa! Namore comigo! Seje pra sempre minha amada !!!
Esteje meio dia e meio em frente da padaria para conversar. Poderemos comprar umas duzentas gramas de mortandela para mim fazê um lanche pra você quando chegarmos em casa. Tomaremos um chopps . . . Estará proibido a entrada de outras pessoas que não seje nós dois. Deixaremos o resto pra depois que decidir nossos caminho.
Com carinho de quem lhe prefere mais do que tudo,

Alrelho

(antes fosse mudo)